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Critical texts

Kika Goldstein: a opacidade das paisagens

 

 

Nenhum de nós poderá jamais recuperar a inocência anterior a toda teoria

—  Susan Sontag, Contra a interpretação

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Há um arranjo de flores no centro da galeria. Que nada mais é que um arranjo de flores, murchando lentamente ao longo da exposição. Assim como as naturezas-mortas, ele encarna a impermanência, a finitude e a fragilidade da vida material. Há pinturas na exposição de Kika Goldstein, que são pinturas: não se trata de retórica, mas de substância espessa, formas, cores e superfícies bem delimitadas. São, quem sabe, investigações sobre o lugar “anterior a toda teoria, quando a arte não precisava de justificativa”, para citar a continuação das palavras de Sontag, que abrem esse texto. 

 

As Vistas são os trabalhos mais antigos. Como método, a artista toma para si a imagem de rostos projetados na tela e, em papel translúcido, vai paulatinamente desconstruindo o que poderia ser um retrato, para transformá-lo em um conjunto de territórios. Transferidos para a tela e preenchidos de cor, os territórios tornam-se autônomos, criando relações internas que já não dependem do referencial. No entanto, como que numa provocação, ele continua lá. Vista Mandaio, por exemplo, é construída de azuis, ocres e laranjas num fundo arroxeado, com uma forma central ovalada e outras duas laterais. A da esquerda se conecta com o “ovo” por uma espécie de rio azul-escuro e a da direita se projeta para fora da tela, em duas extremidades finas. O ovo, na verdade, não é bem um ovo; assim como o rio não é um rio e não se pode ver o Mandaio do título. É pintura. O mesmo acontece com Vista Grace, em que tentamos — sem sucesso — encontrar uma paisagem ou algum indício de Grace. Parecem dunas, é verdade; os tons terrosos também podem se referir aos tons de pele, mas a obra não se deixa submeter à narrativa externa.   

 

As pinturas de Goldstein são pinturas porque, silenciosamente, recusam explicações ou narrativas externas. Elas são opacas. E, na medida em que dialogam com a longa tradição ocidental da pintura a óleo, também recusam a ênfase que historicamente se deu ao conteúdo. Segundo Sontag, “o hábito de abordar a obra de arte para interpretá-la reforça a ilusão de que algo chamado conteúdo de uma obra de arte realmente existe.”  É como se a artista estivesse provocando o espectador a repensar alguns pressupostos há muito naturalizados: por que o conteúdo teria maior valor que a forma? Ou ainda: por que a retórica, o intelecto, seriam mais importantes que a matéria, o corpo, as sensações proporcionadas pela cor? 

 

Para formar um conjunto de quatro obras, expostas lado a lado, Goldstein revisita antigas colagens, em que imagens são formadas pela justaposição de formas recortadas, e as transforma em pintura. A primeira imagem está contida nos limites da tela sobre um fundo escuro como breu, um abismo. É como se a escuridão guardasse em si formas em potencial que se desdobram nos outros três trabalhos, reconfigurando-se para enfim se abrir numa espécie de cavidade, fenda cinza um tanto esmaecida — como as flores da entrada ficarão, com o passar do tempo. Mas, assim como em Vistas, somos traídos pela ilusão persistente de que existe “algo chamado conteúdo”. A impossibilidade de “ler” as pinturas como paisagens — seriam vistas aéreas, montanhas, cânions? — parece nos transportar, com algum desconforto, para o lugar “anterior a toda teoria”, como diria Sontag. E talvez o desconforto exista porque a teoria costuma nos dar alguma segurança frente ao desconhecido; ilusão de controle sobre a realidade material.

 

Dois trabalhos que lembram ondas parecem mimetizar um ao outro. É como se a intensidade dos vermelhos e roxos se transformassem em castanhos, na medida em que, quando as cores se misturam, elas tendem a formar marrons acinzentados. Mais uma vez, a pintura é matéria espessa. Finalmente, há alguns conjuntos de pequenos dípticos escuros, Paisagens noturnas que se assemelham a paisagens, mas que são, antes de mais nada, tinta a óleo e cera de abelha. O mesmo procedimento se repete em todos eles: à esquerda, a “paisagem” é formada pela justaposição de territórios bem delimitados, como nas Vistas. À direita, os “rios” são formados pela retirada de matéria que expõe a cor do fundo; sem os sulcos jamais saberíamos de sua existência. Os “rios”, portanto, não são rios, mas intervenções que deixam evidente a construção da obra. 

 

“Nenhum de nós”, diz Sontag, “poderá jamais recuperar a inocência anterior a toda teoria […]. A partir desse momento até o fim da consciência estamos comprometidos com a tarefa de compreender a arte.” Talvez as pinturas de Kika Goldstein, que são pinturas, possam nos oferecer algumas pistas. Desconfortáveis, talvez, porque não representam nada que lhes é externo e nos convidam a mobilizar outros sentidos, tão ou mais fundamentais que o intelecto. São pinturas opacas, quem sabe, como o fim da consciência. 

 

Mariana Leme

Memórias Perceptivas – Cor, Forma, Espaço 

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 Kika Goldstein nos diz que as memórias são uma fonte profunda de pesquisa para seus trabalhos. São memórias trazidas de um fundo original, de um tempo e um espaço não totalmente decifráveis. Manifestam-se por meio de um som, um odor, uma cor, por tessituras e atmosferas. Esses indícios de memória penetram, segundo a artista, numa compreensão maior, ou seja, num estado criador, num desejo como força produtiva que busca relações entre o que pode ser lembrado e sua experiência contemporânea de mundo da vida.

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Kika desenha intenções pesquisadas em suas origens criadoras, orquestrando heranças próprias, referências fundamentais da arte e do interrogar incessante sobre sua atualidade como artista. É um exemplo sua descrição da construção pictórica pelas massas de cor na busca dos recortes de uma memória esquecida. O olhar movimenta-se à procura de uma arqueologia de formas soltas, fragmentadas e coloridas que, algumas vezes juntas, outras isoladas, se lançam num espaço matérico. 

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Nas palavras da artista: “As formas dançam no lugar do suporte e oferecem-se ao olhar” e “por vezes, vemos cores-formas querendo transgredir os limites do local da tela e alcançar a profundidade vivida”.

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Com seus recortes, encontros das imagens, velando ou entrelaçando sua plástica de mundo em jogos compositivos, Kika Goldstein nos deixa a impressão de que sua visão artística se fundamenta na crença de que a arte pode estar a serviço da cultura: na troca entre as várias dimensões do mundo da vida, a artista procura tecer em visualidades um lugar com a presença do olhar e do pensar sobre o mundo.

O que presenciamos, em primeiro lugar, é a relação da artista com seu ofício – seus esboços, desenhos, aquarelas e óleos são trabalhados por meio de um amplo estudo dos procedimentos a serem usados. Junto a essa característica, sua estreita relação com a pintura fundamenta reflexões sobre a construção da linguagem artística: a pesquisa sobre a cor, a forma que pode envolvê-la, suas texturas e materialidades são referenciadas por pensadores como Merleau-Ponty e Didi-Huberman. 

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A pintura é uma forma de pensar o mundo, é a estrutura de conhecimento e um modo de projetar percepções, sínteses de vivências.

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Em Memórias Perceptivas – Cor, Forma, Espaço, exposição que a artista abre em 10 de outubro na CasaGaleria – Oficina de Arte, o visitante tem a possibilidade de adentrar esse universo e perceber que Kika Goldstein, ao estar empenhada em demonstrar seu pensamento artístico, desenvolve um trabalho lógico e construtivo sustentado pelas relações existentes entre a realidade dada e aquilo que a sustenta por dentro, ou seja, entre a pintura e a apreensão inquietante de mundo.

 

Carmen Aranha e Loly Demercian

Kika Goldstein aproxima a pintura da percepção do espaço e do tempo.


Perdemos aos poucos a capacidade de nos orientar, uma vez que somos direcionados por georreferenciamento e notificados por aplicativos. Ao acompanhar com os olhos as séries de pinceladas e descobrir conexões entre formas e cores, seja no interior de cada pintura, seja entre as pinturas que compõem o espaço como um conjunto, restitui-se uma sensibilidade anestesiada pela tecnologia digital.

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Sabemos onde estamos graças a uma série de experiências acumuladas. Sobre elas pairam incertezas que atormentam quem exige clareza e distinção. A pintura não minimiza as incertezas, pois produz experiências do pensamento motivadas pela dúvida. A bússola natural representada pelas estrelas não é, para a pintura, composta de objetos visíveis. O norte do trabalho de arte está em toda e em nenhuma parte, habita os interstícios, as relações.

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As pinturas de Kika Goldstein foram produzidas sob a impossibilidade de apontar para um norte, de positivá-lo como um ponto cardeal. A partir dessa experiência crítica, a artista compõe uma constelação com obras de outros artistas, ideias filosóficas, memórias e percepções, os muitos nortes que motivam cada um dos gestos que se veem nas pinturas, condensados na intensidade obtida a partir da tinta a óleo com cera de abelha e sublimados no fulgor das cores. 

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As formas não são voláteis nem diáfanas. São firmes, quase sólidas, mas, se sugerem a possibilidade de se consolidar em algo determinado, logo fluem e mudam de direção, desvencilham-se umas das outras, mantêm o espaço aberto.

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As tonalidades ígneas não se diluem em meio aos verdes, ocres e azuis mais foscos, mas irrompem revelando que a terra não é transparente, pois há sempre algo de opaco no solo que sustenta a realidade humana: “A natureza ama esconder-se”, disse Heráclito de Éfeso. Não se trata do mundo percebido enquanto coisa, mas daquilo que escapa ao entendimento no espaço e no tempo, um mistério que subjaz a experiência.

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As principais referências para Kika Goldstein durante a produção das pinturas foram as obras de Hilma af Klint (1862-1944) e Paul Klee (1879-1940). O período coincidiu com as exposições apresentadas pela Pinacoteca do Estado de São Paulo e pelo Centro Cultural Banco do Brasil em São Paulo. Os dois artistas atuaram no limiar da pintura abstrata, dirigiram-se com igual intensidade para a introspecção e para uma experiência direta da natureza. O período coincidiu também com a gestação de sua segunda filha, Isabel.

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Tornar visível o fundo inumano do ambiente humano é uma diretriz comum a Klint e Klee. Kika Goldstein segue esse caminho e encontra na dimensão intersticial das pinturas o que Deleuze chamou de “imagem viva” e que, segundo o filósofo, oculta uma “percepção”. Nosso olhar foi adestrado para se deter em coisas, mas, na pintura, cada forma, cor e pincelada ocorre em sinergia com outras, de modo que se configura uma constelação a cada olhar que se lança no espaço.

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A constelação desdobra-se além das telas ou dos conjuntos de telas, converte o espaço em obra, o ser em relação. 

 

José Bento Ferreira

ENTRE MUNDOS

 

Um dos grandes desafios da arte contemporânea é se libertar dos rótulos. Antes de se preocupar em pesquisar novas visualidades e técnicas, muitos desejam se enquadrar dentro de alguma tendência, estilo ou nomenclatura como se fosse um bote salva-vidas para a construção de uma carreira plástica.

 

Esta exposição de Kika Goldstein apresenta resultados de pesquisas visuais recentes que tanto podem ser vistas como rostos, paisagens ou como qualquer outra coisa. Acima de tudo, são trabalhos com tinta, aquarela e colagem que estão além de definições que apontem determinados olhares líricos ou definam geometrias.

 

As suas representações não apresentam objetos reconhecíveis, mas relações entre cores, linhas e superfícies. Existe nelas, de um modo ou de outro, uma figuração, lá que partem, de alguma maneira, do mundo reconhecível, transformado, por meio da arte e do engenho, ou seja, da sensibilidade e da técnica.

 

O observador, por sua vez, ao praticar a sua percepção, realiza comentários que buscam relacionar aquilo que se vê em termos de resultado plástico com aldo encontrável no mundo real, como um horizonte, um objeto, uma figura humana, um animal ou algo que com o qual encontra identificação ou correspondência.

 

A arte de Kika Goldstein não se dá, porém, pela colocação de uma etiqueta que facilite sua catalogação em museus, exposição em galerias de arte ou consumo por parte do público. É feita na prática cotidiana e no desenvolvimento de uma educação e um conhecimento visual que supera denominações simplistas e se concretiza no aprimoramento técnico constante.

 

Pode-se identificar elementos humanos ou ambientes naturais. Misteriosas jornadas e diálopos entre cores e formas resultam de uma busca permanente em que as tonalidades ofertam um pensar sobre e entre mundos conhecidos e desconhecidos. Ha obras que podem trazer rostos que viram paisagens e vice-versa. Acima de tudo, intrigam e fascinam.

 

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Oscar D'Ambrosio

Pós-Doutor em Educação, Arte e História da Cultura, Mestre em Artes Visuais, jornalista e crítico de arte.

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